(Recebido por e-mail, na época)
Em 1991, a Biblioteca do Congresso norte-americano e o Book-of-the-Month Club promoveram uma pesquisa para saber qual o livro que havia exercido mais influência no público nos últimos cinquenta anos. Em primeiro lugar, a imbatível Bíblia. E em segundo? Algum manual de autoajuda ou um best-seller de Harold Robbins & Cia? Nada disso. O vice-líder foi o oceânico (1100 páginas) Atlas Shrugged, com cerca de dois milhões [número provavelmente subavaliado: até o final de 2009 Atlas Shrugged já havia comprovadamente vendido mais de 7 milhões de cópias *] de exemplares vendidos nos EUA desde a sua publicação, em 1957, o mesmo que figurou nas principais listas dos melhores romances do século publicadas pela imprensa de lá no fim do ano passado, entre elas a da prestigiosa revista Book Reporter. Se o leitor jamais ouviu falar neste livro ou no nome da sua autora, Ayn Rand, saiba que foi traduzido no Brasil em 1987 com o título pouco inspirado de Quem é John Galt? pela editora carioca Expressão e Cultura e reimpresso no ano passado. Outros dois, o romance A Nascente (The Fountainhead, de 1943) e a antologia de dezenove ensaios (com cinco assinados por Nathaniel Branden) intitulada A Virtude do Egoísmo (The Virtue of Selfishness, de 1964) saíram pela editora gaúcha Ortiz respectivamente em 1993 e 1991 e estão à venda nos escritórios do Instituto Liberal, cujas bibliotecas também os emprestam.
Rand não é, portanto, inédita no Brasil, embora o leitor monoglota mereça conhecer melhor as suas ideias reunidas em títulos como For the New Intelectual (1961), Capitalism-The Unknown Ideal (1966), Introduction to Objectivist Epistemology (1967), The Romantic Manifesto (1969), The New Left: The Anti-Industrial Revolution (1971) e Philosophy – Who Needs It? (1982). Mas ela sofre entre nós a injustiça de, à precária divulgação das suas obras, somar-se a indiferença da crítica. O resultado não podia ser outro: fora de um pequeno círculo de admiradores, permanece praticamente ignorada pelo grande público. Este artigo pretende estimular quem ainda tem ainda não a conhece a aprofundar-se nas suas reflexões, aqui resumidas. O clichê é antigo, mas inevitável: pode-se concordar ou não com as ideias de Rand, mas é inegável que cumprem a missão, pretendida pela autora, de provocar o leitor instruído.
A maior paixão da adolescente Alissa Rosenbaum, nascida em São Petersburgo em 2 de fevereiro de 1905, foi o cinema. Filmes mudos americanos, com seu escapismo áspero, eram o principal acesso que os russos da época tinham à cultura popular do Ocidente. Mas veio 1917, Kerensky caiu e tudo mudou. A revolução comunista barrou o acesso à ideologia democrática e passou a usar o cinema como crítica ao capitalismo e propaganda escancarada do totalitarismo, mitificando o cidadão que, mesmo expropriado dos seus bens e da liberdade de pensar, faria qualquer sacrifício pela pátria. Em fins de 1925, graduada em filosofia e história, Alissa consegue um visto para os EUA, país cuja cultura social e política a fascinavam e onde viveria até a sua morte, em 6 de março de 1982, em Nova York. Depois de curta permanência em Chicago e Nova York, já com o nome adotado de Ayn Rand, desembarca em Hollywood levando na bagagem as apostilas dos cursos de cinema feitos na sua cidade natal.
Seu primeiro emprego é de figurante no filme Rei dos Reis, de Cecil B. De Mille, de quem se aproxima. Impressionado com a sua erudição, o cineasta a contrata como consultora de scripts. No set de filmagem conhece o ator Frank O’Connor, com quem se casa. Os dois permanecem juntos até a morte de O’Connor, em 1979, apesar dos relacionamentos extraconjugais públicos de Rand [que se saiba, apenas um, com Nathaniel Branden]. A história de um deles está contada em Passion of Ayn Rand, filme para a televisão dirigido por Christopher Menaul que deu a Peter Fonda o Globo de Ouro do ano passado de melhor ator. Em 1932, Rand vende seu primeiro roteiro, Red Pawn, para a RKO, ofício que lhe propicia a subsistência enquanto trabalha em We the Living, romance de estreia e autobiográfico publicado em 1936 (seguido por Anthem, de 1938, uma distopia sobre o massacre da individualidade), onde narra as atrocidades do regime bolchevista. Levado às telas em 1942 por Goffredo Alessandrini, o filme não a satisfaz. Sete anos depois, nem a direção do grande King Vidor salva The Fountainhead (aqui batizado de Vontade Indômita) do roteiro confuso assinado pela própria escritora.
Ao voltar (definitivamente) para Nova York, em 1951, Rand ganhara o respeito da crítica e do público do seu país devido ao sucesso de The Fountainhead. Neste romance, uma espécie de ensaio para Atlas Shrugged, o arquiteto Howard Roark representa o que a autora chama de “homem ideal”, o que luta pelo primado da razão nas relações humanas. É o homem com um propósito produtivo definido, que leva o egoísmo e a dignidade profissional às últimas consequências, não relutando em dinamitar um conjunto habitacional por causa das mutilações feitas no seu projeto. Ao enfrentar o poder de uma imprensa parcial e toda espécie de vicissitudes, Roark tem consciência de pertencer à minoria constituída por pessoas que reagem a qualquer tentativa de dominação e abominam qualquer forma de conhecimento que não seja alcançado apenas por meio da razão. É que para Rand, a razão é a verdadeira ferramenta do conhecimento, e só ela permite conhecer os fatos da realidade, que é para ser percebida e não inventada, criada ou desvirtuada pela emoção. As bases do seu pensamento sistêmico, batizado de Objetivismo, começam a ser expostas neste romance provocativo que tem Camille Paglia entre os tardios e deslumbrados admiradores.
Uma das frases favoritas de Rand traduz a essência da ética Objetivista: “o homem é um fim em si mesmo”, isto é, ele nada deve sacrificar pelos outros e muito menos querer que os outros se sacrifiquem por ele. Os únicos e autênticos objetivos desse homem (personificado por Roark e, depois, por John Galt) são o exercício da liberdade e a busca da própria felicidade, inatingíveis se ele não abandonar o altruísmo, que Rand considera uma das principais causas das mazelas humanas. Para ela, a pessoa que coloca não a si própria, mas os outros em primeiro lugar, é uma “parasita emocional”. É fácil imaginar o impacto dessas ideias de colorido liberal entre os conservadores de qualquer segmento da sociedade americana, construída a partir da execração do egoísmo, visto como antítese do ideal democrático de convivência. Mas, para Rand, a democracia e o capitalismo laissez-faire, o único sistema econômico que pode ser defendido e validado pela razão, só podem ser concebidos com a valorização do primado da individualidade, o oposto do que ocorre nos regimes totalitários, nos quais as massas são manipuladas em nome de uma pretensa solidariedade altruísta entre pessoas que pensam e agem como um todo, sem um objetivo racionalmente definido.
Rand trabalhou uma década nos originais de Atlas Shrugged. Um dos grandes romances de ideias do século, como Contraponto, A Montanha Mágica, Um Homem sem Qualidades, é “pretexto” para a autora expor, ou melhor, dramatizar as suas ideias filosóficas. A história gira em torno da greve feita pelas lideranças empresariais e intelectuais dos EUA, os “atlas” cujos ombros sustentam o país, e que se vê por causa disso entregue à própria sorte (daí o título do livro). Galt, inspirador e porta-voz daquelas lideranças, é o herói raivoso que expõe as mazelas “altruístas” e injustas de uma sociedade dominada pelos “místicos” e parasitas sociais. Sua idéia de uma sociedade justa –– e utópica –– é a que oferece igualdade de oportunidade para todos. Nesta parábola sobre a luta entre as classes produtivas e criativas e a dos que vivem de pilhagem e saque, Rand pinta o painel de uma América que adia o quanto pode o encontro consigo mesma, temerosa de enfrentar um questionamento sobre os seus verdadeiros ideais, além dos atingidos pelo seu furor consumista. A saga de Galt expõe as vísceras de uma sociedade desorientada, para a qual o hedonismo é a causa primeira, e não a consequência natural dos atos humanos.
Leitora de Francis Bacon, Rand gostava de citar uma frase do filósofo inglês: “a natureza, para ser comandada, tem de ser obedecida”. Seu propósito é o de mostrar que nenhum tipo de processo mental pode alterar as leis da natureza, uma vez que o universo existe independentemente da consciência, isto é, a realidade não depende dela para existir e impor as suas leis. As implicações desta tese, cuja origem está em Aristóteles, repercutem na negação da visão religiosa e social da consciência, pois as duas distorcem, cada uma a seu modo, a realidade que, por sua natureza, só pode ser autenticamente apreendida por meio da razão, a ferramenta básica da sobrevivência do homem, enquanto a racionalidade é a sua maior virtude. As emoções, diz ela, não se prestam à cognição, já que nada dizem a respeito dos fatos, mas apenas à maneira de como elas os apreendem. O mesmo ocorre no processo do envolvimento amoroso: a verdadeira paixão não é a de uma pessoa pela outra, é a de pessoas que partilham as mesmas ideias e os mesmos ideais.
Leitora voraz, com a passagem do tempo Rand tornou-se uma crítica impiedosa dos romancistas contemporâneos, por lhe causarem “tédio mortal”. Na velhice, gostava de reler Victor Hugo, embora sua leitura predileta fossem as novelas policiais de Mickey Spillane porque “tratam o conflito entre o bem e o mal em termos de branco e preto”: para o Objetivismo a tonalidade cinzenta simboliza a inautenticidade e o irrealismo. Passa os últimos anos de vida semireclusa no seu modesto apartamento de Manhattan. Seu grande prazer é contemplar o horizonte da amada Nova York, cujo esplendor é, para ela, incomparável a qualquer outra visão que o planeta possa propiciar. Para quem a fé é a negação da razão, essa atéia coerente não olhava para o céu em busca de Deus, mas para a imponência dos arranha-céus recortados pelo crepúsculo, obras da determinação dos homens e sólidas metáforas do triunfo da razão e da racionalidade que ela passou a vida defendendo.
J. C. Ismael é jornalista e escritor.
[*] EC: ver https://ari.aynrand.org/media-center/press-releases/2010/01/21/atlas-shrugged-sets-a-new-record
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Trechos de livros de Ayn Rand:
“A mente do homem é o instrumento básico da sua sobrevivência. A vida lhe é concedida, mas a sobrevivência, não. Seu corpo lhe é concedido, mas não o seu sustento. Sua mente lhe é concedida, mas o seu conteúdo, não. Para manter-se vivo, o homem precisa agir e, para que possa agir é necessário conhecer a natureza e o propósito da ação escolhida. O homem não pode obter alimento se desconhecer qual é o seu alimento e como precisa agir para consegui-lo. O homem não pode cavar um buraco ou construir um ciclotron sem conhecer o seu objetivo tanto como os meios de atingi-lo… O homem não possui nenhum código automático de sobrevivência. O que o distingue dos outros seres é a necessidade de agir, diante de alternativas, por meio de uma escolha baseada na vontade, pois ele não possui um conhecimento automático daquilo lhe é bom ou mau, de quais valores sua vida se baseia, de que curso de ação esses valores carecem… Afirma-se que o homem é um ser racional, porém a racionalidade é uma questão de opção e as alternativas que lhe são oferecidas são: ser um ser racional ou um animal suicida. O homem tem de ser homem por escolha, de valorizar sua vida por escolha, de aprender a preservá-la por escolha, de descobrir quais os seus valores legítimos e praticar suas virtudes por escolha.
“Pensar é a única virtude básica do homem, da qual todas as demais decorrem. O não pensar é um ato de aniquilamento, um desejo de negar a existência, uma tentativa de apagar a realidade. Porém, a existência existe e a realidade não se deixa apagar, mas faz desaparecer quem a nega. Quem não utiliza seu discernimento nega a si próprio. O homem que proclama: ‘quem sou eu para saber?’ está afirmando: ‘quem sou eu para viver ?’ … A felicidade só pode ser alcançada por um homem racional, o homem que tenha objetivos racionais, que só encontra prazer e alegria em atos racionais… Forçar um homem a abrir mão da sua própria mente e a aceitar em troca a vontade do outro, usando, para tal fim, uma arma, em vez de um silogismo, e o terror, em vez da discussão racional dos fatos , é tentar existir desafiando a realidade.
“Vocês querem saber quem é John Galt? Sou o primeiro homem de sucesso que se recusou a encarar o sucesso como razão para ter sentimento de culpa. Sou o primeiro a não me penitenciar por minhas virtudes, a não deixar que sejam usadas como instrumento da minha destruição. O primeiro a não querer ser martirizado pelos que desejavam que eu morresse em nome do privilégio de mantê-los vivos… Alguns de vocês jamais saberão quem é John Galt. Mas aqueles que experimentaram ao menos um momento de amor à vida e de orgulho disso, e de quando encararam a Terra e a abençoaram com o olhar, esses conheceram o estado de ser homens, e eu –– eu sou o único homem que sabia ser impossível trair esse sentimento… Sejam vocês quem forem…ainda há tempo de optar por ser homem, mas o preço é começar do início, ficar nu diante da realidade e, corrigindo um erro histórico que custou muito caro, declarar : ‘Existo, portanto vou pensar'”.
(Atlas Shrugged / Quem é John Galt?)
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“Aos homens foi ensinado que ego e mal são sinônimos e o ideal da virtude é o altruísmo. O verdadeiro criador é egoísta no sentido absoluto, e o homem abnegado é o que não pensa, não sente, não julga, não age… O egoísta no sentido absoluto não é o homem que sacrifica os outros. É o que está acima da necessidade de usar os outros, seja lá como for. Ele não funciona por meio de terceiros, não se preocupa com eles, nem no seu objetivo, motivo ou pensamento, nem em seus desejos, nem na fonte da sua energia. Ele não existe para outrem e não exige que ninguém exista por ele. Esta é a única forma de fraternidade e respeito mútuo entre os homens.
“O direito fundamental é o direito do ego. O primeiro dever do homem é para consigo mesmo. Sua lei moral jamais coloca seu principal objetivo na pessoa de um terceiro. Sua obrigação moral é fazer o que deseja, desde que seu desejo não dependa, a princípio, de outros homens… O único bem que os homens podem fazer uns aos outros e a mais legitima afirmação de um relacionamento autêntico é: não se meta na minha vida… Civilização é o progresso em direção a uma sociedade onde impere o direito à privacidade. A vida do selvagem é pública, governada pelas leis da sua tribo. Civilização é o processo de libertar o homem dos homens”.
(The Fountainhead / A Nascente)
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“A tarefa da ética é definir o código de valores adequado para o homem e deste modo dar-lhe o meio de alcançar a felicidade. Afirmar, como os hedonistas éticos, que qualquer valor que lhe dê prazer é correto, equivale a afirmar que o valor correto pode ser qualquer um que você decida valorizar, ou seja, praticar um ato de abdicação intelectual e filosófica… Um ato que proclama a futilidade da ética convida os homens a agir irrefletidamente e ao acaso… O canibalismo das doutrinas hedonistas e altruístas consiste na premissa de que a felicidade de um homem implica o prejuízo de outro… A ética Objetivista afirma que o bem humano não requer sacrifício e não pode ser alcançado pelo sacrifício de ninguém, e que os interesses racionais dos homens não se chocam… É a filosofia que estabelece os objetivos dos homens e determina seu rumo, é ela que pode salvá-los. O mundo está enfrentando uma escolha: se a civilização quer sobreviver, os homens precisam rejeitar a moralidade altruísta “.
(“A Ética Objetivista”, ensaio incluído em A Virtude do Egoísmo)
Transcrito aqui em São Paulo, 11 de Junho de 2016