Ayn Rand – Artigo de J C Ismael no Jornal da Tarde de 29-07-2000

(Recebido por e-mail, na época)

Em 1991, a Biblioteca do Congresso norte-americano e o Book-of-the-Month Club promoveram uma pesquisa para saber qual o livro que havia exercido mais influência no público nos últimos cinquenta anos. Em primeiro lugar, a imbatível Bíblia. E em segundo? Algum manual de autoajuda ou um best-seller de Harold Robbins & Cia? Nada disso. O vice-líder foi o oceânico (1100 páginas) Atlas Shrugged, com cerca de dois milhões [número provavelmente subavaliado: até o final de 2009 Atlas Shrugged já havia comprovadamente vendido mais de 7  milhões de cópias *] de exemplares vendidos nos EUA desde a sua publicação, em 1957, o mesmo que figurou nas principais listas dos melhores romances do século publicadas pela imprensa de lá no fim do ano passado, entre elas a da prestigiosa revista Book Reporter. Se o leitor jamais ouviu falar neste livro ou no nome da sua autora, Ayn Rand, saiba que foi traduzido no Brasil em 1987 com o título pouco inspirado de Quem é John Galt? pela editora carioca Expressão e Cultura e reimpresso no ano passado. Outros dois, o romance A Nascente (The Fountainhead, de 1943) e a antologia de dezenove ensaios (com cinco assinados por Nathaniel Branden) intitulada A Virtude do Egoísmo (The Virtue of Selfishness, de 1964) saíram pela editora gaúcha Ortiz respectivamente em 1993 e 1991 e estão à venda nos escritórios do Instituto Liberal, cujas bibliotecas também os emprestam.

Rand não é, portanto, inédita no Brasil, embora o leitor monoglota mereça conhecer melhor as suas ideias reunidas em títulos como For the New Intelectual (1961), Capitalism-The Unknown Ideal (1966), Introduction to Objectivist Epistemology (1967), The Romantic Manifesto (1969), The New Left: The Anti-Industrial Revolution (1971) e Philosophy – Who Needs It? (1982). Mas ela sofre entre nós a injustiça de, à precária divulgação das suas obras, somar-se a indiferença da crítica. O resultado não podia ser outro: fora de um pequeno círculo de admiradores, permanece praticamente ignorada pelo grande público. Este artigo pretende estimular quem ainda tem ainda não a conhece a aprofundar-se nas suas reflexões, aqui resumidas. O clichê é antigo, mas inevitável: pode-se concordar ou não com as ideias de Rand, mas é inegável que cumprem a missão, pretendida pela autora, de provocar o leitor instruído.

A maior paixão da adolescente Alissa Rosenbaum, nascida em São Petersburgo em 2 de fevereiro de 1905, foi o cinema. Filmes mudos americanos, com seu escapismo áspero, eram o principal acesso que os russos da época tinham à cultura popular do Ocidente. Mas veio 1917, Kerensky caiu e tudo mudou. A revolução comunista barrou o acesso à ideologia democrática e passou a usar o cinema como crítica ao capitalismo e propaganda escancarada do totalitarismo, mitificando o cidadão que, mesmo expropriado dos seus bens e da liberdade de pensar, faria qualquer sacrifício pela pátria. Em fins de 1925, graduada em filosofia e história, Alissa consegue um visto para os EUA, país cuja cultura social e política a fascinavam e onde viveria até a sua morte, em 6 de março de 1982, em Nova York. Depois de curta permanência em Chicago e Nova York, já com o nome adotado de Ayn Rand, desembarca em Hollywood levando na bagagem as apostilas dos cursos de cinema feitos na sua cidade natal.

Seu primeiro emprego é de figurante no filme Rei dos Reis, de Cecil B. De Mille, de quem se aproxima. Impressionado com a sua erudição, o cineasta a contrata como consultora de scripts. No set de filmagem conhece o ator Frank O’Connor, com quem se casa. Os dois permanecem juntos até a morte de O’Connor, em 1979, apesar dos relacionamentos extraconjugais públicos de Rand [que se saiba, apenas um, com Nathaniel Branden]. A história de um deles está contada em Passion of Ayn Rand, filme para a televisão dirigido por Christopher Menaul que deu a Peter Fonda o Globo de Ouro do ano passado de melhor ator. Em 1932, Rand vende seu primeiro roteiro, Red Pawn, para a RKO, ofício que lhe propicia a subsistência enquanto trabalha em We the Living, romance de estreia e autobiográfico publicado em 1936 (seguido por Anthem, de 1938, uma distopia sobre o massacre da individualidade), onde narra as atrocidades do regime bolchevista. Levado às telas em 1942 por Goffredo Alessandrini, o filme não a satisfaz. Sete anos depois, nem a direção do grande King Vidor salva The Fountainhead (aqui batizado de Vontade Indômita) do roteiro confuso assinado pela própria escritora.

Ao voltar (definitivamente) para Nova York, em 1951, Rand ganhara o respeito da crítica e do público do seu país devido ao sucesso de The Fountainhead. Neste romance, uma espécie de ensaio para Atlas Shrugged, o arquiteto Howard Roark representa o que a autora chama de “homem ideal”, o que luta pelo primado da razão nas relações humanas. É o homem com um propósito produtivo definido, que leva o egoísmo e a dignidade profissional às últimas consequências, não relutando em dinamitar um conjunto habitacional por causa das mutilações feitas no seu projeto. Ao enfrentar o poder de uma imprensa parcial e toda espécie de vicissitudes, Roark tem consciência de pertencer à minoria constituída por pessoas que reagem a qualquer tentativa de dominação e abominam qualquer forma de conhecimento que não seja alcançado apenas por meio da razão. É que para Rand, a razão é a verdadeira ferramenta do conhecimento, e só ela permite conhecer os fatos da realidade, que é para ser percebida e não inventada, criada ou desvirtuada pela emoção. As bases do seu pensamento sistêmico, batizado de Objetivismo, começam a ser expostas neste romance provocativo que tem Camille Paglia entre os tardios e deslumbrados admiradores.

Uma das frases favoritas de Rand traduz a essência da ética Objetivista: “o homem é um fim em si mesmo”, isto é, ele nada deve sacrificar pelos outros e muito menos querer que os outros se sacrifiquem por ele. Os únicos e autênticos objetivos desse homem (personificado por Roark e, depois, por John Galt) são o exercício da liberdade e a busca da própria felicidade, inatingíveis se ele não abandonar o altruísmo, que Rand considera uma das principais causas das mazelas humanas. Para ela, a pessoa que coloca não a si própria, mas os outros em primeiro lugar, é uma “parasita emocional”. É fácil imaginar o impacto dessas ideias de colorido liberal entre os conservadores de qualquer segmento da sociedade americana, construída a partir da execração do egoísmo, visto como antítese do ideal democrático de convivência. Mas, para Rand, a democracia e o capitalismo laissez-faire, o único sistema econômico que pode ser defendido e validado pela razão, só podem ser concebidos com a valorização do primado da individualidade, o oposto do que ocorre nos regimes totalitários, nos quais as massas são manipuladas em nome de uma pretensa solidariedade altruísta entre pessoas que pensam e agem como um todo, sem um objetivo racionalmente definido.

Rand trabalhou uma década nos originais de Atlas Shrugged. Um dos grandes romances de ideias do século, como Contraponto, A Montanha Mágica, Um Homem sem Qualidades, é “pretexto” para a autora expor, ou melhor, dramatizar as suas ideias filosóficas. A história gira em torno da greve feita pelas lideranças empresariais e intelectuais dos EUA, os “atlas” cujos ombros sustentam o país, e que se vê por causa disso entregue à própria sorte (daí o título do livro). Galt, inspirador e porta-voz daquelas lideranças, é o herói raivoso que expõe as mazelas “altruístas” e injustas de uma sociedade dominada pelos “místicos” e parasitas sociais. Sua idéia de uma sociedade justa –– e utópica –– é a que oferece igualdade de oportunidade para todos. Nesta parábola sobre a luta entre as classes produtivas e criativas e a dos que vivem de pilhagem e saque, Rand pinta o painel de uma América que adia o quanto pode o encontro consigo mesma, temerosa de enfrentar um questionamento sobre os seus verdadeiros ideais, além dos atingidos pelo seu furor consumista. A saga de Galt expõe as vísceras de uma sociedade desorientada, para a qual o hedonismo é a causa primeira, e não a consequência natural dos atos humanos.

Leitora de Francis Bacon, Rand gostava de citar uma frase do filósofo inglês: “a natureza, para ser comandada, tem de ser obedecida”. Seu propósito é o de mostrar que nenhum tipo de processo mental pode alterar as leis da natureza, uma vez que o universo existe independentemente da consciência, isto é, a realidade não depende dela para existir e impor as suas leis. As implicações desta tese, cuja origem está em Aristóteles, repercutem na negação da visão religiosa e social da consciência, pois as duas distorcem, cada uma a seu modo, a realidade que, por sua natureza, só pode ser autenticamente apreendida por meio da razão, a ferramenta básica da sobrevivência do homem, enquanto a racionalidade é a sua maior virtude. As emoções, diz ela, não se prestam à cognição, já que nada dizem a respeito dos fatos, mas apenas à maneira de como elas os apreendem. O mesmo ocorre no processo do envolvimento amoroso: a verdadeira paixão não é a de uma pessoa pela outra, é a de pessoas que partilham as mesmas ideias e os mesmos ideais.

Leitora voraz, com a passagem do tempo Rand tornou-se uma crítica impiedosa dos romancistas contemporâneos, por lhe causarem “tédio mortal”. Na velhice, gostava de reler Victor Hugo, embora sua leitura predileta fossem as novelas policiais de Mickey Spillane porque “tratam o conflito entre o bem e o mal em termos de branco e preto”: para o Objetivismo a tonalidade cinzenta simboliza a inautenticidade e o irrealismo. Passa os últimos anos de vida semireclusa no seu modesto apartamento de Manhattan. Seu grande prazer é contemplar o horizonte da amada Nova York, cujo esplendor é, para ela, incomparável a qualquer outra visão que o planeta possa propiciar. Para quem a fé é a negação da razão, essa atéia coerente não olhava para o céu em busca de Deus, mas para a imponência dos arranha-céus recortados pelo crepúsculo, obras da determinação dos homens e sólidas metáforas do triunfo da razão e da racionalidade que ela passou a vida defendendo.

J. C. Ismael é jornalista e escritor.

[*] EC: ver https://ari.aynrand.org/media-center/press-releases/2010/01/21/atlas-shrugged-sets-a-new-record

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Trechos de livros de Ayn Rand:

“A mente do homem é o instrumento básico da sua sobrevivência. A vida lhe é concedida, mas a sobrevivência, não. Seu corpo lhe é concedido, mas não o seu sustento. Sua mente lhe é concedida, mas o seu conteúdo, não. Para manter-se vivo, o homem precisa agir e, para que possa agir é necessário conhecer a natureza e o propósito da ação escolhida. O homem não pode obter alimento se desconhecer qual é o seu alimento e como precisa agir para consegui-lo. O homem não pode cavar um buraco ou construir um ciclotron sem conhecer o seu objetivo tanto como os meios de atingi-lo… O homem não possui nenhum código automático de sobrevivência. O que o distingue dos outros seres é a necessidade de agir, diante de alternativas, por meio de uma escolha baseada na vontade, pois ele não possui um conhecimento automático daquilo lhe é bom ou mau, de quais valores sua vida se baseia, de que curso de ação esses valores carecem… Afirma-se que o homem é um ser racional, porém a racionalidade é uma questão de opção e as alternativas que lhe são oferecidas são: ser um ser racional ou um animal suicida. O homem tem de ser homem por escolha, de valorizar sua vida por escolha, de aprender a preservá-la por escolha, de descobrir quais os seus valores legítimos e praticar suas virtudes por escolha.

“Pensar é a única virtude básica do homem, da qual todas as demais decorrem. O não pensar é um ato de aniquilamento, um desejo de negar a existência, uma tentativa de apagar a realidade. Porém, a existência existe e a realidade não se deixa apagar, mas faz desaparecer quem a nega. Quem não utiliza seu discernimento nega a si próprio. O homem que proclama: ‘quem sou eu para saber?’ está afirmando: ‘quem sou eu para viver ?’ … A felicidade só pode ser alcançada por um homem racional, o homem que tenha objetivos racionais, que só encontra prazer e alegria em atos racionais… Forçar um homem a abrir mão da sua própria mente e a aceitar em troca a vontade do outro, usando, para tal fim, uma arma, em vez de um silogismo, e o terror, em vez da discussão racional dos fatos , é tentar existir desafiando a realidade.

“Vocês querem saber quem é John Galt? Sou o primeiro homem de sucesso que se recusou a encarar o sucesso como razão para ter sentimento de culpa. Sou o primeiro a não me penitenciar por minhas virtudes, a não deixar que sejam usadas como instrumento da minha destruição. O primeiro a não querer ser martirizado pelos que desejavam que eu morresse em nome do privilégio de mantê-los vivos… Alguns de vocês jamais saberão quem é John Galt. Mas aqueles que experimentaram ao menos um momento de amor à vida e de orgulho disso, e de quando encararam a Terra e a abençoaram com o olhar, esses conheceram o estado de ser homens, e eu –– eu sou o único homem que sabia ser impossível trair esse sentimento… Sejam vocês quem forem…ainda há tempo de optar por ser homem, mas o preço é começar do início, ficar nu diante da realidade e, corrigindo um erro histórico que custou muito caro, declarar : ‘Existo, portanto vou pensar'”.

(Atlas Shrugged / Quem é John Galt?)

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“Aos homens foi ensinado que ego e mal são sinônimos e o ideal da virtude é o altruísmo. O verdadeiro criador é egoísta no sentido absoluto, e o homem abnegado é o que não pensa, não sente, não julga, não age… O egoísta no sentido absoluto não é o homem que sacrifica os outros. É o que está acima da necessidade de usar os outros, seja lá como for. Ele não funciona por meio de terceiros, não se preocupa com eles, nem no seu objetivo, motivo ou pensamento, nem em seus desejos, nem na fonte da sua energia. Ele não existe para outrem e não exige que ninguém exista por ele. Esta é a única forma de fraternidade e respeito mútuo entre os homens.

“O direito fundamental é o direito do ego. O primeiro dever do homem é para consigo mesmo. Sua lei moral jamais coloca seu principal objetivo na pessoa de um terceiro. Sua obrigação moral é fazer o que deseja, desde que seu desejo não dependa, a princípio, de outros homens… O único bem que os homens podem fazer uns aos outros e a mais legitima afirmação de um relacionamento autêntico é: não se meta na minha vida… Civilização é o progresso em direção a uma sociedade onde impere o direito à privacidade. A vida do selvagem é pública, governada pelas leis da sua tribo. Civilização é o processo de libertar o homem dos homens”.

(The Fountainhead / A Nascente)

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“A tarefa da ética é definir o código de valores adequado para o homem e deste modo dar-lhe o meio de alcançar a felicidade. Afirmar, como os hedonistas éticos, que qualquer valor que lhe dê prazer é correto, equivale a afirmar que o valor correto pode ser qualquer um que você decida valorizar, ou seja, praticar um ato de abdicação intelectual e filosófica… Um ato que proclama a futilidade da ética convida os homens a agir irrefletidamente e ao acaso… O canibalismo das doutrinas hedonistas e altruístas consiste na premissa de que a felicidade de um homem implica o prejuízo de outro… A ética Objetivista afirma que o bem humano não requer sacrifício e não pode ser alcançado pelo sacrifício de ninguém, e que os interesses racionais dos homens não se chocam… É a filosofia que estabelece os objetivos dos homens e determina seu rumo, é ela que pode salvá-los. O mundo está enfrentando uma escolha: se a civilização quer sobreviver, os homens precisam rejeitar a moralidade altruísta “.

(“A Ética Objetivista”, ensaio incluído em A Virtude do Egoísmo)

Transcrito aqui em São Paulo, 11 de Junho de 2016

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Ayn Rand: Romancista, Filósofa e Polemista

[Este é o primeiro capítulo, introdutório, de um livro sobre Ayn Rand que estou começando a por no papel (já existe na minha cabeça há tempos) e pode servir de base para as interações no Grupo de Discussão (acesso por convite) que criei no Facebook há poucos dias. Deixo indicado qual será o conteúdo dos capítulos seguintes (a partir do Capítulo II.]

Conteúdo

  1. Introdução [Este capítulo está abaixo, neste post]
  2. A Pessoa
  3. A Romancista
  4. A Filósofa
  5. A Polemista
  6. O Legado
    1. Nos Estados Unidos
    2. Na Rússia / União Soviética
    3. Global
    4. No Brasil
  7. Conclusão

I. Introdução

Travei conhecimento com as ideias de Ayn Rand em 1973, quando, a partir de Agosto, passei a trabalhar no Departamento de Filosofia do Pomona College, em Claremont, CA, na grande Los Angeles. Um colega de departamento meu, J. Charles King, também professor de Filosofia, responsável pelas disciplinas de Filosofia Política e Filosofia Social (eu ministrava Metafísica, Filosofia da Religião e Ética), me perguntou se eu já havia lido algum livro dela. Meio constrangido, eu, recém chegado ao departamento, e doutorado há apenas um ano (concluí meu Ph.D. em Filosofia pela University of Pittsburgh, em Agosto de 1972), respondi que não só não havia lido nada escrito por ela como nunca havia sequer ouvido falar nela dentro dos sacrossantos halls da Cathedral of Learning, em Pittsburgh. Por sugestão dele, ao final do almoço, fui até uma livraria, no centro de Claremont, e comprei Atlas Shrugged, que, segundo o Charles, era o livro mais importante dela. Apesar do tamanho intimidatório do livro (mais de mil páginas!), comecei a ler imediatamente e não consegui parar de ler. Na verdade, atravessei duas noites lendo até que cheguei ao fim. Nunca alguém havia me transmitido, ao recomendar a leitura de um livro, o senso de urgência que Charles fez sentir.

Minha sensação, ao terminar de ler o livro, foi de que minha vida nunca mais seria a mesma. A gente tem – alguns de nós, pelo menos, temos, e eu me incluo entre eles – uma certa impressão, num nível que eu chamaria de ainda pré-conceitual, de como devem ser as coisas, de como elas devem funcionar na realidade, e de como deve ser a vida humana, de como as pessoas devem se relacionar umas com as outras em sociedade. É isso que faz com que crianças relativamente pequenas tenham uma certa impressão muito definida acerca do que é, e do que não é, justo, ou “fair” (justificado pelas regras do jogo). Minha filha mais velha, Andrea, que tinha três ou quatro meses quando li Atlas Shrugged pela primeira vez, sempre retorquia, desde seus três ou quatro anos, “That isn’t fair”, quando era obrigada a interromper  alguma atividade de que gostava para fazer algo necessário mas não tão agradável… A impressão que ela tinha da vida era que não era justo que, bem na hora em que a gente está feliz, fazendo algo de que gosta, alguém viesse nos interromper para que fizesse algo desagradável, ainda que importante ou necessário.

É essa impressão que nos permite dizer, muito antes de entendermos, conceitualmente, o que é justiça ou o que é “fairness”, que determinado curso de ação não é justo, “isn’t fair”… Ayn Rand foi a primeira pessoa capaz de, sem nunca me ter visto, conceituar e verbalizar aquilo que, em mim, era, até ali, apenas uma impressão pré-conceitual da realidade, em geral, e da vida, em particular. Ela colocou em palavras aquilo que eu apenas sentia: meu sentido do que era certo e justo na vida, meu sentido do que eu devia fazer e deixar de fazer na vida, meu sentido do que fazia a vida valer a pena… Ela explicitou aquilo que, como vim a descobrir depois, ela mesma chamava de “my sense of life. (Não confundir “sense of life” com “meaning of life”). Uma vez que a gente veja essa impressão da gente conceituada e verbalizada, é possível refletir sobre ela, identificar pontos positivos, que precisam ser conservados, pontos negativos, que precisam ser rejeitados, e pontos que precisam ser aperfeiçoados. Foi por isso que eu disse que, depois de ler o primeiro livro de Ayn Rand, minha vida nunca mais foi a mesma. Ali me identifiquei claramente, em filosofia, como um realista, empirista, racionalista, objetivista – sendo plenamente capaz de definir esses conceitos e de entender porque eles poderiam integrar a uma visão coerente e convincente do mundo e do papel de nossa vida no mundo.

Na universidade havia aprendido que empirismo e racionalismo eram termos que representavam escolas filosóficas conflitantes, incompatíveis… Mas eu tinha uma inclinação favorável às duas… Foi uma grata surpresa, e um grande alívio, descobrir que eu podia defender as duas coisas, sem contradição. Em casa, na igreja, no Seminário, havia aprendido que, segundo o Cristianismo, devemos amar o próximo como a nós mesmos. Esse comando parece reconhecer que o amor a nós mesmos e o nosso auto interesse são posturas legítimas. No entanto, a ética altruísta de Kant, que acabou substituindo o comando do Evangelho, como se fosse a única interpretação possível dele, preconizava que deveríamos colocar o dever para com o outro sempre antes e acima do nosso dever para com nós mesmos. No extremo, sugeria Kant, se uma pessoa que eu amo e uma pessoa que eu detesto estão igualmente em perigo, meu dever moral seria salvar a pessoa que detesto, porque estaria fazendo isso por dever (não por afeição), pois as ações que fazemos porque fazê-las nos faz bem e nos torna felizes, não têm mérito moral, pois são meros atos egoístas… Isso me parecia “unfair”, e Ayn Rand me mostrou que realmente era um contrassenso… Mostrou que o egoísmo é, na verdade, uma virtude, não um vício, e que o mais alto dever que temos é com nós mesmos, posto que a nossa vida é, para nós, nosso bem mais elevado.

Em 1974 voltei para o Brasil para ser professor de filosofia na UNICAMP. Inicialmente deveria ir para o Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), onde trabalhava o Rubem Alves, mas acabei ficando, de início meio contra a vontade,  no recém criado Departamento de Filosofia e História da Educação (DEFHE) da Faculdade de Educação (FE), que só tinha um outro doutor, o meu amigo Newton Aquiles von Zuben, que, contudo, tinha formação em filosofia na linha fenomenológica (predominante na Europa Continental), enquanto eu tinha tido minha formação em filosofia na linha analítica (predominante nos países de fala inglesa). Acabei ficando no DEFHE durante os trinta e dois anos e meio que passei na UNICAMP, até me aposentar, no início de 2007 – apesar de nunca ter estudado educação ou pedagogia formalmente na vida – nem mesmo filosofia da educação.

Na UNICAMP, ninguém conhecia Ayn Rand – nem no IFCH, nem na FE. Boa parte dos professores do IFCH e da FE seguia uma orientação marxista em seu trabalho, não só em filosofia, como em história e sociologia da educação. Como o tempo era ainda de ditadura militar, embora o ditador na época em que cheguei na UNICAMP fosse luterano, o marxismo era velado ou disfarçado, nunca aberto e declarado.

Convenci-me, muito cedo, de que, além de me especializar rapidamente em filosofia da educação, precisava me especializar também em filosofia política, e tentar, no processo, alinhavar uma filosofia liberal da educação – ou uma filosofia da educação liberal. Ayn Rand me foi de valor inestimável nesse processo. Investi fundo no estudo de sua obra, comprando tudo que achei que fosse escrito por ela ou sobre ela (a favor ou contra).

No segunda metade da década de 1990, depois de a Internet ter chegado ao Brasil, e de ter sido mantida nas mãos da iniciativa privada, e não da Telebrás, graças ao grande Sérgio Motta, Ministro das Comunicações (e amigo pessoal) de Fernando Henrique Cardoso, criei vários sites, um pessoal, outro de Educação e Tecnologia, e outro sobre Ayn Rand. Conforme vim a descobrir depois, foi o primeiro site criado sobre Ayn Rand em língua portuguesa. Comprei junto à FAPESP (hoje quem vende é o REGISTRO.BR) o domínio aynrand.com.br para hospedar o meu site sobre Ayn Rand. Hospedei-o num site americano (do qual sou cliente até hoje), chamado “MyDomain.Com”.

Através do site vim a encontrar (virtualmente) várias pessoas interessadas em Ayn Rand aqui no Brasil, comecei a me relacionar com o Instituto Liberal de São Paulo (ILSP), convivi algum tempo com Henry Maksoud, que tinha um programa de orientação liberal na TV Bandeirantes, chamado Henry Maksoud e Você, que batalhou para que a Constituição de 1988 fosse “menos cidadã” e menos protetora dos chamados direitos sociais, e mais protetora dos direitos individuais defendidos pelos liberais clássicos. O site me ajudou a participar dessa batalha.

Vários motivos me levaram a tirar o site do ar depois que me aposentei da UNICAMP, em 2007. A principal delas foi a mudança para um outro site provedor de acesso à Internet e hospedeiro de domínios, fato que me obrigaria a reconstruir todos os meus sites em ambiente diferente. Na época era Secretário Adjunto de Ensino Superior do Estado de São Paulo, estava assumindo a Presidência do Instituto Lumiar, e, assim, preferi deixar todos os meus sites fora do ar até que pudesse revê-los. Só mantive no ar o meu blog Liberal Space, que havia criado em Dezembro de 2004 num site mantido pela Microsoft, e que depois a Microsoft transferiu para a empresa Automattic, que mantém os blogs WordPress. (Hoje, segundo consta, 26% dos sites da Internet são “motorizados” pela WordPress.)

Hoje estou ressuscitando, em três ambientes diferentes, o material sobre Ayn Rand que eu tinha no site original. Os ambientes são um blog (operado, naturalmente, pela WordPress), um site (na forma de uma “fan page” no Facebook), e um grupo de discussão (também hospedado no Facebook).

Espero que esse último ambiente – o grupo de discussão – sirva para que tenhamos, nós, os interessados em Ayn Rand hoje em dia, a possibilidade de estudar e discutir realizados de forma mais sistemática (algo que eu fazia de forma precária, anteriormente, com um grupo de discussão criado no Yahoo!. Espero que este texto possa servir de base para alimentar esse estudo e essa discussão.

A obra de Ayn Rand pode ser estudada e discutida a partir de três enfoques:

  • como romancista ou autora de obras de ficção
  • como filósofa ou autora de textos filosóficos
  • como polemista ou palestrante e autora de textos polêmicos que debateram as grandes questões do dia.

Como autora de obras de ficção Ayn Rand escreveu quatro romances, algumas peças de teatro e pelo menos um conto. Foi essa a obra que a projetou nacionalmente e acabou por torna-la mundialmente conhecida.

Como autora de textos filosóficos, que até bem pouco tempo eram solenemente ignorados nos meios acadêmicos. Sua obra filosófica consiste de alguns livros, de coletâneas de artigos, e de escritos em três newsletters, nos quais apresentou e defendeu sua filosofia.

Como autora de textos polêmicos, ou de debate, ela escreveu inúmeros artigos em jornais e revistas, bem como deu inúmeras palestras e entrevistas, sempre engajada na defesa do individualismo e do liberalismo clássico, das liberdades e dos direitos individuais e dos Estados dos Founding Fathers (Pais Fundadores) e na crítica dos coletivismos, em especial do socialismo marxista e da Rússia / União Soviética marxista.

A pessoa de Ayn Rand (em contraposição à sua obra) tem gerado enorme interesse também, tendo sido objeto de livros, documentários e filmes. Pessoa “opinionada”, e de opiniões extremamente controvertidas, Ayn Rand se tornou, em vida e depois, objeto, de um lado, de verdadeira veneração e devoção “cultista”, quase religiosa, e, de outro lado, de agressiva crítica e contestação. Não tenho dúvida de que Ayn Rand foi um gênio – tanto na área literária como na área filosófica. Contudo, ao mesmo tempo que fazia sucesso com o público leitor e com alunos universitários, era solenemente ignorada pelos críticos literários e pelos filósofos acadêmicos. Isso felizmente está mudando atualmente.

O legado de Ayn Rand, nos Estados Unidos e no mundo afora, inclusive no Brasil, é assim debatido. Ela morreu em 1982 – vai fazer 35 anos no ano que vem (2017). Já era hora de se alcançar algum consenso. Mas esse consenso parece estar longe.

Na vida de Ayn Rand, a escritora de ficção veio antes, e a polemista depois, da filósofa. Vou manter essa ordem aqui, na Introdução (Capítulo I) e nos demais capítulos. Aqui na Introdução, no que segue, falarei, introdutoriamente, sobre Ayn Rand a romancista, a filósofa e a polemista. Em três capítulos subsequentes (III-V), discutirei novamente essas questões, com maior abrangência e profundidade. Não discutirei, aqui na Introdução, a pessoa e o legado de Ayn Rand. Isso será feito apenas nos demais capítulos (a pessoa, no capítulo II, e o legado, no capítulo VI). O texto terminará, no Capítulo VII, com a tentativa de chegar a alguma avaliação sensata sobre a importância da vida e da obra de Ayn Rand na história da literatura, da filosofia e dos embates políticos do século XX.

1. A Romancista

Quanto à autora de ficção, Ayn Rand nos assegura que, quando tinha cerca de nove ou dez anos, já havia decidido que seria ser escritora. Adorava a literatura e o cinema (que, neste caso, ainda mudo, começava a se popularizar quando ela era uma adolescente a caminho da juventude, em sua cidade natal de São Petersburgo). Ela nunca abandonou sua determinação de ser escritora. Na verdade, a determinação se tornou uma verdadeira obsessão.

Enquanto ainda em São Petersburgo, concentrou seus estudos nas áreas de filosofia, psicologia e história, que facilitariam sobremaneira sua capacidade de criar personagens heróicos e enredos fantásticos, épicos mesmo, mas totalmente críveis, realistas no sentido de que não eram pessoas e sequências de acontecimentos totalmente implausíveis, embora em regra fossem raras.

Nascida em 1905, Alyssa Zinovievna Rosenbaum era filha de judeus russos que haviam prosperado (talvez até mesmo enriquecido, no contexto do país) através do comércio, e sua família conheceu o sucesso, a prosperidade, e até mesmo a riqueza relativa. Mas ela viu tudo isso ser destruído a partir da Revolução Comunista de 1917, quando entrava na adolescência (tinha doze anos em 1917). Nove anos depois, em 1926, quanto alcançou a maioridade de 21 anos, em 1926, saiu do país, em decisão pessoal e solitária – sozinha, sem os pais, sem os irmãos. Conseguiu visto americano para visitar parentes seus que viviam em Chicago, nos Estados Unidos, e com alguma dificuldade obteve o salvo conduto que lhe permitia deixar a Rússia e o passaporte que a autorizava a viajar para o exterior. Foi para Chicago, via Londres. Nunca mais colocou os pés na Rússia, nem viu seus pais e seus irmãos (exceto no caso de uma irmã que veio visita-la nos Estados Unidos, quando ela já era uma escritora famosa – mas acabaram se desentendendo).

Em Chicago sua obsessão era aprender a língua, ver filmes americanos no cinema, e praticar sua redação – em Inglês – numa máquina de escrever Remington Rand, que acabou por lhe sugerir parte de seu nom de plume.

Ayn Rand não ficou muito tempo em Chicago – na época dominada por Al Capone. Queria estar perto do mundo do cinema, que ela amava. Achou um jeito de se mudar para a região de Los Angeles, onde passou a residir, inicialmente, não longe dos famosos estúdios de cinema.

Rapidamente dominou a língua inglesa de modo a ouvir e entender, sem problemas, e escrever razoavelmente bem – cada vez melhor. O Inglês falado também melhorou muito, mas até o final de sua vida ela nunca perdeu o sotaque forte causado pelo russo (que, é bom que se diga, deixou de falar totalmente). Sua voz era gutural, não muito agradável.

O mais importante era o aperfeiçoamento da redação. Ela fez isso revisando roteiros para o cinema, em Hollywood, trabalhando para os estúdios do grande Cecil B. de Mille, que ficou impressionado com a determinação da moça de vinte e poucos anos. Ela chegou até a fazer uma ponta em The King of Kings (O Rei dos Reis), obra talvez mais famosa do grande diretor.

Dado seu interesse pelo indivíduo heroico e os horrores que sua família sofreu nas mãos do estado comunista, todos os escritos de ficção que Ayn Rand escreveu lidam com temas como a defesa indivíduo frente à sociedade e o estado, o combate aos coletivismos, a crítica aos socialismos e ao comunismo. Embora admirasse muito os Estados Unidos dos Founding Fathers (Pais Fundadores), e os Estados Unidos potência industrial emergente ao longo do século XIX, Ayn Rand não gostava do que ela viu nos Estados Unidos durante o New Deal (Novo Pacto) de Franklin Delano Roosevelt e depois da Segunda Guerra Mundial.

Escreveu quatro romances – dos quais os dois últimos foram os mais importantes e se tornaram notáveis bestsellers. São eles, pela ordem: Anthem (Hino), de 1933, We, the Living (Nós os Vivos), de 1938, The Fountainhead (A Nascente), de 1943, e Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), de 1957. Todos os seus livros, com exceção do primeiro, se tornaram filmes ou séries, aparecendo nesse formato na mesma ordem em que foram publicados.

2. A Filósofa

Foi descrevendo os dilemas que as pessoas confrontam e as interações e os conflitos que são obrigadas a enfrentar para poder viver a vida que desejam viver que Ayn Rand forjou sua filosofia. A sua é uma filosofia muito mais antiga do que moderna, muito mais ancorada na Grécia Clássica de Aristóteles do que na Modernidade Europeia representada pela filosofia analítica de Bertrand Russell, G. E. Moore e Ludwig Wittengentein, ou pela Fenomenologia de Edmund Husserl, ou ainda pelo Existencialismo de Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre (este, como Rand, filósofo, romancista e teatrólogo – mas com visões de mundo, sentido de vida e mindset totalmente diferentes).

A filosofia de Ayn Rand é uma filosofia de vida, na verdade “uma filosofia para viver aqui na Terra”, embora ela não dispense, muito pelo contrário, aperfeiçoe, os alicerces metafísicos, epistemológicos, éticos, políticos e estéticos da filosofia de Aristóteles, alicerces esses que foram em grande parte abandonados pela filosofia moderna, tanto a empirista (anglo-saxônica) como a racionalista-idealista (no parte continental da Europa). A exceção, em termos, é a filosofia católica de vertente tomista, visto que Tomás de Aquino era admirador e seguidor de Aristóteles também.

Diferentemente de outros filósofos modernos e atuais, Ayn Rand sempre defendeu, na área de Metafísica e Epistemologia, a tese de que não há a menor dúvida de que existe uma realidade fora de nós (realismo), que nós podemos conhecê-la (contra o que dizem os céticos), com base em nosso mecanismo perceptual (empirismo) e na integração de nossas percepções através de nossa razão (racionalismo), e, por fim, que o conhecimento assim obtido e processado é objetivo (objetivismo) e, em certo sentido, absoluto (absolutismo epistemológico), e não subjetivo (subjetivismo) e relativo (relativism0). É bom que se diga que, embora nessa área Ayn Rand tivesse de combater os filósofos modernos, ela estava claramente do lado do senso comum, como a maioria das pessoas que não são filósofas profissionais.

Por causa de seu posicionamento firme na área de Metafísica e Epistemologia, Ayn Rand optou por chamar sua filosofia de Objetivismo (em vez de, digamos, Empirismo Racional, ou Racionalismo Empirista, ou coisa semelhante).

Na área da Ética e da Política, Ayn Rand é defensora incondicional do individualismo, da liberdade, dos direitos individuais, da ação pautada pelo auto interesse racional, e do egoísmo, como princípio moral. E é a mais ardorosa e eficaz defensora do liberalismo clássico no século 20. Nem Ludwig von Mises, nem Friedrich von Hayek, nem Milton Friedman, os dois últimos Prêmios Nobel em Economia, lhe chegaram aos pés em termos de promoção, na prática, dos ideias do liberalismo clássico na política e na economia – na economia política – do século XX.

Ayn Rand combateu, incansavelmente, ao longo do século XX, todas as formas de esquerdismo, todas as esquerdopatias, defendendo, com unhas e dentes, o Estado Mínimo e combatendo os socialismos, em especial o de inspiração marxista. Combateu, acima de tudo, o Comunismo. Ronald Reagan e Margareth Thatcher foram seus leitores e admiradores. Não é à toa que eles receberam crédito pelo esmoronamento do Comunismo no final da década de 1980 e começo da década de 1990 – e, em parte, repassaram esse crédito a ela. Os intelectuais de esquerda e a mídia nunca reconheceram isso. Na verdade, não reconhecem nem mesmo o papel de Reagan e Thatcher, a quem em geral odeiam, como odeiam a Ayn Rand.

Na área da Estética, em especial da estética aplicada à literatura, Ayn Rand defendeu o que eu chamaria de (não vi ninguém mais rotular sua posição assim) “Realismo Heroico”. Seu realismo não é o realismo de “a vida como ela é”. A vida como ela é, descrita, por exemplo, na obra de Nelson Rodrigues, é repugnante à maioria das pessoas – e o seria especialmente a Ayn Rand, se ela a conhecesse. A literatura supostamente realista que foca o pior de que o ser humano é capaz – os criminosos, os ladrões, os corruptos, os viciados – não é a literatura que maioria das pessoas admira. Ayn Rand a detestava. A maioria das pessoas gosta de ler, e ver no cinema, histórias em que seres humanos vão além do que parecia ser possível alcançar, revestem-se de características heroicas que, de certo modo, caracterizam perfis ideais. Ninguém quer ler um livro ou ver um filme sobre os seus vizinhos do lado, sobre a gentinha invejosa e maledicente que encontra no trabalho, sobre as baixarias que acontecem quando as pessoas suspendem a ação de seu superego, com seus princípios e normas morais, e libera o seu id, deixando livres os seus piores instintos, “metendo o pé na jaca”, por assim dizer. Ayn Rand considera o seu sentido da vida e a sua visão do mundo realistas não porque muitas pessoas os adotem ou instanciem, mas porque eles são possíveis e é esse sentido de mundo e essa visão de mundo que deveríamos tentar viver e concretizar na sociedade. Na visão de Ayn Rand, insatisfeito com a realidade que ele encontra, o escritor de ficção deve recriar a realidade de acordo com seus valores, com sua visão de mundo (que nada mais são do que seu “sense of life” conceituado e verbalizad0).

Por incrível que possa parecer, o liberal Mário Vargas Llosa, Prêmio Nobel da Literatura de 2010, peruano que perdeu por muito pouco a eleição para a presidência de seu país para Alberto Fujimori, este, depois de eleito, apeado do poder por corrupção, e Ferreira Gullar, poeta e escritor de ficção patrício, ex-marxista, têm visões da estética literária, e acerca da arte, em geral, muito parecidas com a de Ayn Rand.

Depois de publicar Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), em 1957, Ayn Rand não escreveu mais ficção: dedicou-se a trabalhar na sistematização de sua filosofia.

Depois que o Partido Democrata chegou ao poder com John Kennedy (1961) e, depois do assassinato de Kennedy, com Lyndon Johnson (1963), Ayn Rand, navegando no sucesso de seus romances, se tornou uma intelectual pública, debatendo as grandes questões nacionais. Escreveu em jornais, deu palestras em universidades e em qualquer lugar que a recebesse, participou como convidada nos principais programas de rádio e televisão do país. Uma de suas entrevistas mais famosas e longas foi dada à revista Playboy, em 1981. Dizem que pela primeira vez mais gente comprou a revista pela entrevista interna do que pela coelhinha da capa…

3. A Polemista

De certo modo era de esperar que Ayn Rand se tornasse uma polemista, uma defensora ferrenha do liberalismo clássico e dos Estados Unidos dos Founding Fathers (Pais Fundadores), e uma crítica contundente do socialismo marxista e da Rússia (depois União Soviética) comunista.

Depois do enorme sucesso de seus dois últimos romances, e depois de escrever várias obras de natureza filosófica e publicar coleções de artigos de natureza polêmica, criticando a esquerda americana (que lá se rotula liberal num sentido novilíngua do termo), Ayn Rand se engajou de corpo e alma no debate político americano.

 Apesar da crítica violenta que fez à esquerda aninhada no Partido Democrata, Ayn Rand não deixou de criticar também o conservadorismo do Partido Republicano, discordando até mesmo do Partido Libertário, que, aparentemente, teria tudo para ser tornar um fellow traveler (companheiro de viagem) dela.

o O o

Este capítulo introdutória para aqui. No capítulo seguinte irei apresentar uma sucinta biografia de Ayn Rand. Esta breve Introdução teve por objetivo simplesmente situa-la como escritora de ficção, filósofa e polemista.

Em Salto, 6 de Junho de 2016

Ayn Rand e A Revolta de Atlas

(Transcrito, com pequenas modificações e adaptações, do meu blog “Liberal Space” – http://liberal.space)

No artigo seguinte transcreverei um trecho de um romance de autoria de Ayn Rand para dar aos leitores que nunca a leram um gosto de sua prosa.

Rand é uma romancista, filósofa e polemista americana — embora tenha nascido na Rússia (São Petersburgo), em 1905, em lar judeu, com o nome de Alyssa Zinovievna Rosenbaum, só vindo para os Estados Unidos em 1926 — com 21 anos, portanto. Deixou toda a sua família imediata (pais, irmãos e a maior parte dos tios e primos) na Rússia. Dominou a língua inglesa com perfeição e bastante rapidez e fez sucesso escrevendo — sempre em Inglês, nunca em Russo.

O trecho que será transcrito no artigo seguinte mostra a inviabilidade de uma sociedade baseada no princípio “De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade”. Em outras palavras, o trecho mostra a inviabilidade do Socialismo.

É um trecho longo. O romance do qual foi retirado é Atlas Shrugged, publicado em 1957. O livro já foi publicado três vezes em Português.

A primeira a publicar o livro foi a Editora Expressão e Cultura, em 1987, no trigésimo aniversário de sua publicação original. A tradução foi de Paulo Henriques Britto. A edição tem 904 páginas, em um só volume, e teve o título de Quem é John Galt?

A mesma edição, com o mesmo título, voltou a ser lançada pela mesma editora em 1999, agora em dois volumes (mas com o mesmo número de páginas total, visto se tratar da mesma diagramação anterior).

Finalmente, a terceira edição foi impressa pela Editora Sextante, com o patrocínio de várias instituições liberais, com destaque para o Instituto Millenium. A tradução é a mesma, mas foi revisada e recebeu nova diagramação. O livro saiu, desta vez, em três volumes, com 352, 382 e 496 páginas, respectivamente, o que traz o total de páginas para 1230. O título em Português foi alterado para A Revolta de Atlas. Em 2010 saiu uma nova impressão, mas agora feita pela Editora Arqueiro, de São Paulo. 

A seguir, transcrevo um artigo meu escrito e publicado (a convite do jornal) na Folha de S. Paulo de 9 de Outubro de 2010, na seção Cifras & Letras, quando do relançamento da terceira edição do livro no Brasil pela Editora Arqueiro, que sucintamente apresenta Ayn Rand e A Revolta de Atlas.

CRÍTICA – LIBERALISMO

Ayn Rand ataca socialismo mostrando greve de patrões

Livro formou economistas como Alan Greenspan, ex-presidente do Fed

Eduardo CHAVES

[ESPECIAL PARA A FOLHA]

A Bíblia do pensamento liberal na segunda metade do século não é um livro de economia ou de filosofia política: é um romance.

Atlas Shrugged, a clássica defesa da liberdade, do individualismo e do capitalismo escrita por Ayn Rand (1905-82), romancista e filósofa russo-americana, acaba de ganhar novo lançamento de sua terceira edição em Português, com novo título: A Revolta de Atlas.

As edições anteriores, publicadas em 1987 (primeira, em um volume) e 1999 (segunda, em dois volumes), e há muito esgotada, tinha o título de Quem é John Galt? A tradução é a mesma, mas foi editada e revisada pela editora Sextante, sendo agora relançada pela Editora Arqueiro. 

Com 1230 páginas na presente edição, o livro tem um enredo extremamente complexo e bem elaborado, que não é possível resumir aqui.

No entanto, uma descrição, ainda que breve, do tema escolhido por Rand dá ideia da dimensão da obra.

Originalmente publicada em 1957, a história se passa nos Estados Unidos, numa época futura em que o país, seguindo o exemplo de países europeus e latino-americanos, caminha para o socialismo e resolve regular totalmente, e assim controlar, a sua economia.

GREVE DOS CHEFES

O livro descreve o que acontece quando aqueles que (como Atlas) sustentam o mundo nas costas resolvem fazer greve, sacudindo o mundo dos ombros e deixando que ele literalmente se dane.

“Vamos ver o que acontece ao mundo quando quem faz greve contra quem” é frase (retirada do livro) que resume o tema da obra.

Entrando em greve, empresários americanos começam a desaparecer, abandonando suas empresas nas mãos de reguladores e controladores estatais. Grandes filósofos, cientistas e artistas também desaparecem, abandonando seus empreendimentos.

O lado otimista da história é que o Estado pode confiscar o patrimônio de empresas e outros empreendimentos, mas não consegue obrigar empresários e outros empreendedores a lhe arrendar suas mentes, sua criatividade, sua competência, seu trabalho.

O Estado, portanto, que fique com os empreendimentos, decidem seus proprietários na história. Mas eles não colocam mais suas mentes a serviço da sustentação de um mundo onde esse tipo de confisco pode acontecer.

(Na realidade, o que deixam para o Estado espoliador não passa da carcaça de empresas e empreendimentos cuja alma eles levaram consigo.)

CAOS

A história narra nos mínimos detalhes o caos que resulta dessa inusitada greve em que aqueles que normalmente são vítimas das greves, os empreendedores e os homens de negócios, retiram do mercado sua mente e seu trabalho, e, no processo, deixam o mundo sem bens, sem serviços, sem empregos.

Quando Atlas faz greve, o mundo literalmente desmorona (mais ou menos como aconteceu com o mundo comunista em 1989).

Ao final da história, quando as luzes do velho mundo se apagam, simbolizando a derrocada que lhe sobrevém quando Atlas deixa de sustentá-lo, a porta está aberta para a construção de um mundo novo: a greve termina e Atlas está pronto para reassumir seu lugar.

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EDUARDO CHAVES foi professor de filosofia da Universidade Estadual de Campinas e, depois de aposentado, leciona filosofia da educação no Centro Universitário Salesiano de São Paulo.

TÍTULO: A Revolta de Atlas
AUTORA: Ayn Rand
TRADUÇÃO: Paulo Henriques Britto
EDITORAS: Sextante e Arqueiro
QUANTO: R$ 69,90 (1230 págs.)

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me0910201005.htm

Em São Paulo, 9 de Outubro de 2010

Transcrito aqui em Salto, 9 de Janeiro de 2016