Assisti nos últimos dois dias à Atlas Shrugged Trilogy — a primeira tentativa séria de colocar o livro Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), de Ayn Rand, em filme. A série saiu aos pedaços, gravados em momentos diferentes (2010-2011, 2012 e 2014), e, o que é pior, com atores diferentes em cada Parte — sem qualquer repetição no elenco. Esse fato em si já teria sido suficiente para que eu não gostasse da Trilogia.
É verdade que o livro é dividido em três partes claramente marcadas (cada uma delas com dez capítulos) e isso sugere que uma série em três partes seria razoável. Para cada uma das três partes haveria um título, que corresponderia aos três princípios básicos — às vezes chamados de as três leis — da Lógica: “Não-Contradição” (“Non-Contradiction”), “Ou Um, Ou Outro” (“Either-Or“), e “A é A” (“A is A“). [O título de cada parte é, na realidade, Atlas Shrugged (A Rebelião de Atlas), The Strike (A Greve) e Who is John Galt? (Quem é John Galt?), respectivamente].
Voltando aos três princípios básicos da Lógica, eles podem ser nomeados e descritos de forma mais inteligível da seguinte forma, que os descreve quando aplicados à Espistemologia (Teoria do Conhecimento):
- Nenhum enunciado pode ser verdadeiro e falso simultaneamente [Princípio da Não-Contradição];
- Todo enunciado ou é verdadeiro ou é falso, não existindo uma terceira alternativa [Princípio do Terceiro Excluído];
- Um enunciado verdadeiro será sempre verdadeiro, e um enunciado falso será sempre falso [Princípio da Identidade].
Os princípios em questão podem, quando aplicados à Metafísica / Ontologia (Teoria da Realidade / do Ser), ter uma redação um pouco diferente:
- Nenhuma entidade pode ser e não ser ao mesmo tempo [Princípio da Não-Contradição];
- Toda entidade ou é ou não é, não existindo uma terceira alternativa [Princípio do Terceiro Excluído];
- Uma entidade é o que é, e não uma outra coisa [Princípio da Identidade].
No entanto, a Trilogia não faz menção a esses três princípios, enquanto tais, mas suas três Partes de certo modo representam os três princípios.
Na Primeira Parte, Dagny Taggart é confrontada com duas visões de mundo: a visão de um mundo alicerçada na liberdade individual e a visão do mundo focada na coletividade dirigista. Fica-lhe evidente, na Primeira Parte, que essas duas visões de mundo não podem conviver, e, que, mais cedo ou mais tarde, uma delas vai prevalecer e a outra desaparecer.
Na Segunda Parte, Dagny Taggart tenta encontrar uma “Terceira Via” que lhe permita, sem abrir mão de seus princípios, acomodar-se a um mundo que adota a visão do mundo alternativa, convicta de que será capaz de alcançar a vitória, se as pessoas apenas forem racionais… Não dá certo.
Na Terceira Parte, Dagny Taggart se convence de que é preciso abandonar o mundo à sua própria sorte e remover dele sua presença, sua competência, e sua atividade — mas ainda tenta uma última cartada… Não dá certo. O mundo que em que ela nasceu e viveu até ali desmorona. Uma coisa é o que é, não uma outra coisa. Não dá para transformar o mundo aos poucos, de forma gradualista, piecemeal…
Quem leu A Revolta de Atlas antes de ver o filme é capaz de perceber isso. Eu que já li e ouvi o livro uma dezena de vezes, no mínimo, vi isso claramente. Mas duvido que uma audiência composta de não adeptos de Rand consiga ver.
Faço um parêntese acerca da situação do Brasil de hoje…
Liberalismo ou Socialismo… Não dá para ter uma sociedade que é parte liberal e parte socialista, nem dá para criar uma sociedade que endossa um Socialismo Liberal ou um Liberalismo Social. Imaginar que é possível ser um pouco das duas coisas, pegar o melhor das duas, em convivência pacífica, é pensar utopicamente. De certo modo liberais radicais e socialistas radicais concordam. São os que não querem ser radicais ou extremistas que, de certo modo, atrapalham as coisas e retardam as medidas que precisam ser realizadas, pregando tolerância…
A solução criativa de Ayn Rand não é deixar que as duas visões mundo entrem em guerra civil e que ganhe a que for mais forte. Ela sugere que os liberais, no exercício do que resta de sua liberdade, façam greve — tirem o time de campo — e deixem os socialistas ir para o brejo. “Vamos ver quem se dana quando quem faz greve”, é o dito que ela emprega. Os liberais representam o Atlas que segura o mundo nas costas. Na hora em que eles derem de ombro, saindo de campo, o mundo socialista se autodestruirá numa antropofagia nunca vista.
Voltando aos aspectos técnicos do filme.
Usar três conjuntos de atores para representar os personagens principais (Dagny Taggart, Hank Rearden, Francisco d’Anconia, e John Galt, no lado “do bem”, e James Taggart, Lillian Rearden, Wesley Mouch, e Mr. Thompson, no lado “do mal”) foi uma decisão desastrada.
Por que isso foi feito?
O livro The History of the Atlas Shrugged Movie Trilogy, de Joan Carter explica:
“A seleção dos atores foi um dos maiores desafios. Na maior parte das trilogias (Star Wars e Lord of the Rings, por exemplo), a sequência inteira, envolvendo as três partes, é filmada de uma só vez e as partes vão sendo distribuídas para os cinemas com certo intervalo. Esse fato permite que o conjunto dos atores permaneça constante. No caso de Atlas Shrugged, o cronograma de filmagem e os recursos disponíveis não permitiram que contratação dos atores para a primeira parte da Trilogia se desse também para as outras duas partes. Depois de gravada a Primeira Parte, os produtores não conseguiram contratar os mesmos atores para as outras duas partes. Eles já tinham assumido compromissos com outras filmagens e os produtores não acharam viável retardar a filmagem para conseguir ter a participação dos mesmos atores.” (Loc 493-499, Kindle)
Além desse problema, os atores escolhidos para a Primeira Parte (e também para as demais) estiveram longe de ser os mais adequados. John e Mr. Thomson, o Presidente dos EUA, só aparecem de fato na Terceira Parte. Mas Dagny, Hank, Francisco, para não mencionar Ragnar Danneskjöld, são inadequados em todas as partes em que aparecem. Galt, especialmente, que deveria ser o grande herói do filme, é uma total decepção. E do outro lado, também, o lado dos maus, há sérios desajustes. Na terceira parte, Francisco e John, quem deveriam ter a mesma idade parecem pai (Francisco, representado por um ator português) e filho (John). E assim vai.
Mais um problema. O livro foi escrito no final dos anos 40 e nos primeiros seis ou sete anos dos anos 50. [O livro The Journals of Ayn Rand, editado por David Harriman, afirma que Ayn Rand começou pesquisar para Atlas Shrugged em 1 de Janeiro de 1945, e começou a escrever o livro a sério, e de forma metódica, em Abril de 1946. Vide pp.389-390]. O livro foi concluído dia 20 de Março de 1957 e foi oficialmente lançado no dia 10 de Outubro de 1957 [Vide http://aynrandlexicon.com/about-ayn-rand/timeline.html%5D. Rand situa os acontecimentos “em um futuro próximo” (1957 sendo o ano base — o ano em que ela publicou o livro). Contudo na resposta a uma carta de uma fã, que lhe perguntou sobre a data dos eventos da história, Rand respondeu: “Para ser precisa, a ação de Atlas Shrugged tem lugar em um futuro próximo, digamos que cerca de dez anos na frente do momento em que a pessoa estiver lendo o livro…” [Apud Atlas Shrugged: The Novel, The Films, The Philosophy, David Kelley Editor [The Atlas Society, 2014, Kindle Edition]. Não ajudou muito, não é? Mas a dica dada é útil: as ações do livro estarão sempre no futuro em relação ao momento em que o leitor está lendo.
Ligando os dois últimos parágrafos. O ator que representou Francisco d’Anconia na Terceira Parte da Trilogia parece pai do ator que o representou na Primeira Parte. No entanto, como veremos adiante, a trama inteira leva apenas três anos e meio. Seria impossível que um ator envelhecesse tanto ao longo desse relativamente curto período.
Na Primeira Parte da Trilogia (mas não no livro) é fornecida uma data absoluta: 2017. Uma data assim absoluta, que, por exemplo, hoje já é passada, não parece corresponder ao que Ayn Rand imaginou.
A Segunda Parte da Trilogia já adota uma estratégia diferente. Informa-se a quem está assistindo o filme que a ação se passa “num futuro próximo” (usando a expressão de Rand), imagina-se que em relação ao momento em que a pessoa está vendo o filme. Mas, na Segunda Parte, logo depois de se referir ao “futuro próximo”, a ação recua nove meses, isto é, aparentemente volta para o passado — mas havendo um momento em que mais uma vez passa para o futuro. E a Terceira Parte não é situada, a não ser pelo fato de que parece ser uma sequência imediata da Segunda Parte. Mas é complicado entender as coordenadas temporais.
David Kelley, o editor e organizador do livro Atlas Shrugged: The Novel, The Films, The Philosophy, já mencionado, tenta fazer uma Linha do Temp das ações do livro, com base a várias referências colocadas por Ayn Rand no texto — para ajudar o leitor a se situar na história. Mas os tempos são só relativos, nenhum deles sendo absoluto. Vou resumir os achados de David Kelley, que foi discípulo de Ayn Rand e hoje é um conceituado Professor Universitário e empresário:
- A ação começa num dia 2 de Setembro — de algum ano. Mesmo sem ter uma referência absoluta quanto ao ano, o dia 2 de Setembro é mencionado várias vezes, dando uma ideia da duração dos acontecimentos.
- James Taggart, o irmão de Dagny Taggart, se casa no dia 2 de Setembro dois anos depois.
- Em 2 de Setembro do ano seguinte fracassa a tentativa de nacionalizar a empresa principal de Francisco D’Anconia. O evento marca o terceiro aniversário do início dos acontecimentos.
- A ação termina cerca de cinco ou seis meses depois — logo, em Fevereiro ou Março do Ano 4.
Assim sendo, a ação descrita no livro dura cerca de três anos e meio.
Fico grato a David Kelley por ter se dado o trabalho de fazer esse cálculo porque ele nos ajuda a dimensionar o andamento da trama.
Último problema: as três partes não podem ser assistidas independentemente. Quem for assistir uma parte sem ter assistido a(s) anterior(es), fica perdido. E quem assistir as partes iniciais sem ver a(s) seguinte(s) fica com a nítida sensação de que saiu no meio do meio do filme, sem ficar sabendo como a ação terminou. Isso é frustrante.
Um Post Scriptum: O estilo dos letreiros muda de filme para filme, dando a impressão de que não foram sequer filmados pela mesma companhia… E uma coisa simplesmente ridícula, que teria feito Ayn Rand subir as paredes. Eddie Willers, o secretário de Dagny Taggart, que, no livro, é descrito como louro (vide p.624 da edição de capa dura em Inglês), no filme é representado por negros retintos).
É uma Trilogia que decepciona. Mas os fãs de Ayn Rand devem ver o filme, apesar disso. É sempre bom relembrar o enredo daquele que é, para mim, o maior romance realista jamais escrito.
Dados, retirados do site IMDB.com:
Parte I – Atlas Shrugged (A Rebelião de Atlas) – Lançado em 15/4/2011, com gravação iniciada no ano anterior, 97 min
Dagny Taggart – Taylor Schilling
Hank Rearden – Grant Bowler
James Taggart – Matthew Marsden
Francisco d’Antonia – Jsu Garcia
Parte II – The Strike (A Greve) – Lançado em 12/10/2012, 111 min
John Galt – D. B. Sweeney
Dagny Taggart – Samantha Mathis
Hank Rearden – Jason Beghe
James Taggart – Patrick Fabian
Francisco d’Antonia – Esai Morales
Parte III – Who is John Galt? (Quem é John Galt?) – Lançado em 12/9/2014, 99 min
John Galt – Kristoffer Polaha
Dagny Taggart – Laura Regan
Hank Rearden – Rob Morrow
James Taggart – Greg Germann
Francisco d’Anconia – Joaquim de Almeida
Em Salto, 8 de Janeiro de 2019. Transcrito do meu blog Chaves.Space (https://chaves.space). Revisado nos dias 9-10 de Janeiro de 2019.
Obrigado. Boa sorte.
LikeLike